Thursday, May 17, 2012

Relato de uma despedida

    Eu não me lembro muito bem como foi aquele dia inteiro, mas tenho bem viva a memória daquela tarde primaveril de Bangalore. Como de costume, peguei um ônibus rumo ao meu trabalho. Meio que por querer, eu sempre perdia a condução da empresa. Sou frágil demais para aguentar um ônibus sem suspensão pneumática. Então o jeito era gastar um pouco mais e ir de Volvo.
No caminho para o trabalho, eu geralmente parava em um shopping, o Bangalore Central. Lá eu tomava um lanche, que variava entre uma masala dosa ou uma samosa chaat ou então os deliciosos momos chineses recheados com vegetais. Seguia dali a minha viagem, que demorava aproximadamente 40 minutos até o meu destino final, o escritório.
Aquele dia, pra mim, foi especial. As árvores estavam mais lindas do que nunca, exibindo orgulhosas suas flores que lembram ipês cor-de-rosa (ninguém soube me dar o nome exato daquelas flores, invisibilizadas por uma rotina cruel para a grande maioria dos indianos). O clima estava agradável, como é de praxe em Bangalore. Fiquei ali olhando pela janela, contemplando a beleza daquelas árvores e especulando quando eu as veria novamente.
Sim, aquele dia foi especial porque era o meu último dia de trabalho. E um dos meus últimos em Bangalore. Saber que eu estava por deixar aquela cidade que, quatro anos atrás, me acolhera tão carinhosamente - ao mesmo tempo em que me mostrara o quão brutal a realidade pode ser - causou em mim um misto de sentimentos.  
Chegando ao meu trabalho, a longa caminhada. Seis minutos que pareceram sessenta, quão imensa foi a duração daquela caminhada. Eu estava ansiosa, oscilando entre a alegria e o medo. Fui contando a minha respiração, prestando atenção nos intervalos entre o ar que entrava e o que saía e andando devagarzinho. Era isso mesmo? Eu estava me preparando para outra imigração? Dessa vez para um lugar que eu nunca havia pisado na minha vida?
Antes de entrar para o escritório, sentei num parque que fica bem ali pertinho e fiquei contemplando o pôr-do-sol. Naquele dia, eu encontraria a minha casa vazia ao retornar. Meus móveis haviam sido vendidos. Meu marido tinha ficado por conta de ajudar o rapaz que os comprara a fazer a mudança. Isso tudo enquanto eu estivesse fora.
Quando o céu já estava perdendo o tom rosado, criei forças e entrei. Todos me olhavam com um misto de alegria e a peculiar melancolia que é tão cara às despedidas. Assinei uma pilha de papéis. Devolvi meu token que dava acesso à papelada virtual dos clientes. Devolvi meu crachá. Não demorou muito e já era a hora da janta. Fui com várixs colegas ao primeiro andar, onde fica a cafeteria. Coloquei a comida no bandejão, sentei e em meio a conversas sobre amenidades diversas, fiquei olhando para os cantos do local. Geralmente, éramos brindadxs com a presença de alguns ratinhos. A presença deles era tão constante que ninguém sequer notava. Eu notava. Era assustador perceber como a máxima do cada um na sua incluía até os ratos, ali naquele pedaço da Índia.   
E assim foi o meu último dia de trabalho. Absorta em pensamentos e divagações fortuitas, sendo quase engolida por uma inefável sensação de incerteza. Não demorou muito e minha amiga veio me ver. Eu a apelido internamente de Mumtaz, tamanha a beleza da guria. Ela me escolheu para ser sua amiga. E me mostrou o quanto eu precisava desmistificar toda uma idéia, pesada e imposta por um ocidente sedento por marginalizar os outros, que eu tinha das muçulmanas.  Ali nos parques daquele centro tecnológico, nós duas rimos, caminhamos, choramos e compartilhamos praticamente todas as nossas experiências. É incrível perceber que o apoio, muitas vezes, vem daquelas pessoas que parecem as mais improváveis. E é igualmente incrível perceber quão universais alguns questionamentos humanos são.
Enfim, chegou a hora de partir. A Mumtaz me deu um abraço e naquele abraço, choramos. Você é a irmã que eu nunca tive, ela disse. E me aconselhou a relaxar, coisa que, naquele momento e por meses no porvir, eu não conseguiria fazer. Foi particularmente doído me separar dela. Porém, me senti satisfeita por ter aprendido tanto. E doado tanto. E por perceber que ali, diante de mim, eu não tinha uma pessoa frágil e sim alguém que vai enfrentar a vida com muita valentia.
Segui meu caminho de volta, dessa vez no ônibus da empresa. Chorei durante o trajeto. Cheguei em casa e, antes de subir ao sétimo andar em que eu morava, enxuguei o rosto. Queria parecer feliz para o Senthil. Entrei no apartamento e lá estava ele, sentado no chão, na sala vazia. O local parecia imenso. Ao invés de aproveitar o espaço, eu o entulhei de coisas, foi o que pensei. Coisas, coisas, coisas. Só ao mudar percebemos a nossa inquebrantável capacidade de juntar objetos inúteis.
Ali, naquele apartamento vazio, nos abraçamos. Estava iniciada uma nova fase da minha vida. Uma fase cheia de dúvidas, incertezas, mas com laços de esperança renovados. Chorei. Ele enxugava minhas lágrimas e, na ânsia de me consolar perguntava mas não era isso que você queria? Pensei nos quase quatro anos atrás, na exata ocasião em que deixei meu amado Brasil. E só pude responder uma coisa: querer, meu querido, também dói.  



Sunday, January 29, 2012

A "israelense" e a habilitação indiana






Dando um tempo na minha usual apatia para contar um causo pra vocês: eu tirando a carteira de habilitação na Índia.

Depois de três anos vivendo aqui, eu resolvi enfrentar o medo do trânsito e procurei uma auto-escola. Antes de comprar qualquer veículo, seria melhor verificar se eu realmente daria conta de dirigir aqui, foi o que pensei. E lá fui eu, me matricular na auto-escola, que por acaso fica ao lado do prédio em que moro.

O instrutor era muito gente fina, conversava bastante e tentava me fazer o mais confortável possível. Ele, assim como todos da auto-escola, simplesmente não entenderam, de jeito nenhum, que eu sou brasileira. Encafifaram que eu sou israelense. O que me deixava intrigada, já que, pelo meu parco conhecimento, não tenho a menor cara de israelense. As conversas eram sempre assim:

- Madame, Israel é bem mais organizado que a Índia né?
- Ah, deve ser. Eu não conheço Israel. Eu sou do Brasil. Brasileira.
- Ohhhh.

Na outra aula:

- Madame, em Israel tem muito motoqueiro?
- Eu não sei! Não sou israelense! Sou do Brasil! Brasil, América do Sul, futebol, Ronaldo, sabe o Ronaldo?
- Ahhh, Ronaldo, sei sim! Que legal! Mas então, ouvi dizer que em Israel não tem muita moto...
(eu quase batia a cabeça contra o volante, tentava ignorar a pergunta, respirava fundo e continuava a dirigir)

Fora essa questão estranha de "madame, lá em Israel...", as aulas eram mais ou menos assim:

- Madame, olha a vaca!

(...)

- Madame, olha o homem!

(...)

- Madame, olha o buraco!

(...)

- Madame, por que parou o carro?
- Ué, praquela família ali passar, oras!
- Não, madame, aqui não é Israel (????)
- Comassim???
- Madame, aqui a gente buzina e vai. Quem tiver passando que espere. Não dá pra esperar não (gargalhadas)

Assim eu fui, timidamente, aprendendo a usar a buzina. Ele elogiava e, obviamente, ria de mim: tem que usar essa buzina mais e apertar mais forte!

- A madame dirige bem.
- Ah, é?
- É sim. Eu só não gosto da forma como você para o carro em inclinações.
(putz, eu super me orgulhava da minha rampa, mas tudo bem)
- Ué, mas por quê?
- É que se a madame continuar fazendo assim, vai reprovar no teste. Tem que ficar com o pé no freio.
- Hummmm.

Ele continuou:

- Então, se a senhora não ficar com o pé no freio o tempo todo, o carro vai voltar.
- Escuta aqui, você já me viu deixando esse carro voltar?
- Não, madame, mas na prova você vai deixar (risos)

Daí que ele pegou tanto no meu pé que eu acostumei a ficar com o pé no freio direto, usando inclusive o freio de mão. Quero ver a confusão quando eu precisar dirigir de novo no Brasil =D

A prova teórica se deu sem muitas emoções. Fora a bagunça de ficar horas numa fila vendo as pessoas sendo aprovadas ou reprovadas numa prova oral em que todo mundo via quais questões estavam sendo perguntadas, foi tudo tranquilo.

Legal mesmo foi a prova prática =D

Foi assim: juntaram a galera de umas quatro auto-escolas em uma rua não muito movimentada perto da minha casa. Um senhor de uniforme militar, bigodão e voz autoritária chegou gritando:

- Quem for fazer prova de carro fica lá atrás! Motos, façam uma fila aqui! Agora!

E a galera fez uma fila de motos. O esquema era mais ou menos assim: pega sua moto, segue em linha reta, vira à direita e dê a volta no quarteirão. Se chegar de volta ao ponto inicial de pé e com tudo em cima, você aprova. E acreditem, tinha gente que, por nervosismo ou sei lá o quê, deixava a moto apagar na linha reta mesmo. Esses, obviamente, reprovavam.

Até que chegou a vez dos carros. Eu fui a primeira a ser testada. Naquela altura, todos já me conheciam como a "gringa israelense que estava tentando tirar a carta". Dessa vez quem me acompanhou foi o dono da escola, e não o professor. Minutos antes do teste ele veio correndo até mim, esbaforido, dizendo assim: madame, não conta que você é de Israel não, ok? Só se ele insistir em saber. Vamos tentar fazer a prova como indiana mesmo, pra ser mais fácil de passar.

Porém, quando chegou minha hora, a notícia já tinha se espalhado. O bigodão sentou no banco de trás e pediu meus documentos.

Olhei pro dono da auto-escola, que estava ao meu lado e perguntei "todos os documentos?", ao que ele disse "ok, dê todos os documentos". O bigodão logo interveio:

- Sim madame, me passa o seu passaporte, já fiquei sabendo que você é estrangeira. De onde é a madame?
- Sou do Brasil.
- Brasil? Que legal! E está fazendo o quê aqui na Índia, madame?
- Eu casei com um indiano.
- Hum, interessante. Que lugar você prefere, o Brasil ou a Índia?

Que lugar você prefere? Nesses três anos e pouco, perdi as contas das vezes em que ouvi essa pergunta. E acreditem, quando eu digo a coisa mais óbvia, que é a de que as pessoas geralmente preferem a terra natal, a reação não é nada agradável. Então, eu me limito a dar um sorriso de Monalisa e dizer: Ahhh, eu amo a Índia! Daí eles entendem que eu prefiro a Índia e se tornam extremamente mais amáveis comigo. E foi assim com o bigodão, que deu início à prova:

- Dê marcha a ré e entre na rua à esquerda.

Fiz.

- Bom. Agora estacione ali (me mostrou o lugar, sem nenhuma marcação ou nenhum impedimento, tipo, sem nenhum carro estacionado).

Fiz.

- Agora dê a volta no quarteirão.

Fiz.

- Pare naquela inclinação ali.

Fiz, com o recurso do freio de mão, obviamente.

- A madame já dirigia antes, né?
- Já sim, só que do lado esquerdo.
- Muito bem, foi aprovada. Boa sorte (esboçou um sorriso, pois nessas horas ele já estava simpático comigo). 

Depois disso, fui ao Departamento de Trânsito de Karnataka, onde me fizeram assinar milhões de papéis e pronto, habilitada!

Espero que tenham gostado desse causo. Aproveitando que resolvi driblar um pouco a preguiça de escrever, quero desejar a tod@s que porventura leiam este blog um ano novo de muita saúde, paz, menos preconceitos e muitas realizações!

Até!