Eu não me lembro muito bem como foi aquele
dia inteiro, mas tenho bem viva a memória daquela tarde primaveril de
Bangalore. Como de costume, peguei um ônibus rumo ao meu trabalho. Meio
que por querer, eu sempre perdia a condução da empresa. Sou frágil demais
para aguentar um ônibus sem suspensão pneumática. Então o jeito era
gastar um pouco mais e ir de Volvo.
No
caminho para o trabalho, eu geralmente parava em um shopping, o
Bangalore Central. Lá eu tomava um lanche, que variava entre uma masala
dosa ou uma samosa chaat ou então os deliciosos momos chineses recheados
com vegetais. Seguia dali a minha viagem, que demorava aproximadamente
40 minutos até o meu destino final, o escritório.
Aquele
dia, pra mim, foi especial. As árvores estavam mais lindas do que
nunca, exibindo orgulhosas suas flores que lembram ipês cor-de-rosa
(ninguém soube me dar o nome exato daquelas flores, invisibilizadas por
uma rotina cruel para a grande maioria dos indianos). O clima estava
agradável, como é de praxe em Bangalore. Fiquei ali olhando pela janela,
contemplando a beleza daquelas árvores e especulando quando eu as veria
novamente.
Sim,
aquele dia foi especial porque era o meu último dia de trabalho. E um
dos meus últimos em Bangalore. Saber que eu estava por deixar aquela
cidade que, quatro anos atrás, me acolhera tão carinhosamente - ao mesmo
tempo em que me mostrara o quão brutal a realidade pode ser - causou em
mim um misto de sentimentos.
Chegando
ao meu trabalho, a longa caminhada. Seis minutos que pareceram
sessenta, quão imensa foi a duração daquela caminhada. Eu estava
ansiosa, oscilando entre a alegria e o medo. Fui contando a minha
respiração, prestando atenção nos intervalos entre o ar que entrava e o que saía e andando devagarzinho. Era isso mesmo? Eu estava me preparando
para outra imigração? Dessa vez para um lugar que eu nunca havia pisado
na minha vida?
Antes
de entrar para o escritório, sentei num parque que fica bem ali
pertinho e fiquei contemplando o pôr-do-sol. Naquele dia, eu encontraria
a minha casa vazia ao retornar. Meus móveis haviam sido vendidos. Meu
marido tinha ficado por conta de ajudar o rapaz que os comprara a fazer a
mudança. Isso tudo enquanto eu estivesse fora.
Quando
o céu já estava perdendo o tom rosado, criei forças e entrei. Todos me
olhavam com um misto de alegria e a peculiar melancolia que é tão cara
às despedidas. Assinei uma pilha de papéis. Devolvi meu token que dava
acesso à papelada virtual dos clientes. Devolvi meu crachá. Não demorou
muito e já era a hora da janta. Fui com várixs colegas ao primeiro
andar, onde fica a cafeteria. Coloquei a comida no bandejão, sentei e em
meio a conversas sobre amenidades diversas, fiquei olhando para os
cantos do local. Geralmente, éramos brindadxs com a presença de alguns
ratinhos. A presença deles era tão constante que ninguém sequer notava.
Eu notava. Era assustador perceber como a máxima do cada um na sua
incluía até os ratos, ali naquele pedaço da Índia.
E
assim foi o meu último dia de trabalho. Absorta em pensamentos e
divagações fortuitas, sendo quase engolida por uma inefável sensação de
incerteza. Não demorou muito e minha amiga veio me ver. Eu a apelido
internamente de Mumtaz, tamanha a beleza da guria. Ela me escolheu para
ser sua amiga. E me mostrou o quanto eu precisava desmistificar toda
uma idéia, pesada e imposta por um ocidente sedento por marginalizar os
outros, que eu tinha das muçulmanas. Ali nos parques daquele centro
tecnológico, nós duas rimos, caminhamos, choramos e compartilhamos
praticamente todas as nossas experiências. É incrível perceber que o
apoio, muitas vezes, vem daquelas pessoas que parecem as mais
improváveis. E é igualmente incrível perceber quão universais alguns
questionamentos humanos são.
Enfim,
chegou a hora de partir. A Mumtaz me deu um abraço e naquele abraço,
choramos. Você é a irmã que eu nunca tive, ela disse. E me aconselhou a
relaxar, coisa que, naquele momento e por meses no porvir, eu não
conseguiria fazer. Foi particularmente doído me separar dela. Porém, me
senti satisfeita por ter aprendido tanto. E doado tanto. E por perceber
que ali, diante de mim, eu não tinha uma pessoa frágil e sim alguém que
vai enfrentar a vida com muita valentia.
Segui
meu caminho de volta, dessa vez no ônibus da empresa. Chorei durante o
trajeto. Cheguei em casa e, antes de subir ao sétimo andar em que eu
morava, enxuguei o rosto. Queria parecer feliz para o Senthil. Entrei no
apartamento e lá estava ele, sentado no chão, na sala vazia. O local
parecia imenso. Ao invés de aproveitar o espaço, eu o entulhei de coisas, foi o que pensei. Coisas, coisas, coisas. Só ao mudar percebemos a
nossa inquebrantável capacidade de juntar objetos inúteis.
Ali,
naquele apartamento vazio, nos abraçamos. Estava iniciada uma nova fase
da minha vida. Uma fase cheia de dúvidas, incertezas, mas com laços de
esperança renovados. Chorei. Ele enxugava minhas lágrimas e, na ânsia de
me consolar perguntava mas não era isso que você queria? Pensei nos
quase quatro anos atrás, na exata ocasião em que deixei meu amado Brasil. E só pude
responder uma coisa: querer, meu querido, também dói.